A nova era dos cuidados pessoais

Com a aprovação do Estatuto dos Cuidadores Familiares/Informais e a regulamentação agora conhecida, a implementar em 30 municípios com carácter experimental, abre-se uma nova era na prestação de cuidados pessoais em Portugal.

No entanto, é imperativo olhar para a floresta e não nos deixarmos iludir apenas pela árvore que tem sido apresentada como a mais frondosa, os cuidadores familiares, cujo número é apontado como sendo de cerca de 800 mil, embora todos saibamos que não há sobre a sua veracidade qualquer comprovativo nem quaisquer estudos fiáveis que confirmem a extensão deste grupo.

Com o início das candidaturas aos apoios agora determinados será possível começar a ter um pouco de luz sobre esta realidade, embora nesta primeira fase o processo seja restrito a quem se inclua nos parâmetros técnicos-burocráticos que definem a pobreza.

Como quer que seja, estamos a assistir a uma mudança de paradigma ao considerar-se que o cuidado pessoal prestado nas famílias não é apenas responsabilidade destas, mas também do Estado, princípio que afasta o enquadramento do problema numa perspetiva meramente assistencialista e configura um novo direito até aqui não reconhecido formalmente.

Infelizmente este assunto tem sido tratado de forma muito emotiva e política e pouco técnica pelo que não tem sido possível analisá-lo mais profundamente nos seus impactos financeiros para a comunidade, uma vez que a prestação de cuidados em família diminui os custos dos prestados em instituições e era importante, para quem paga os impostos que financiam as medidas, que se soubesse o custo real desta nova modalidade aferido o deve e haver das alternativas institucionais versus as familiares. Mas um dia lá chegaremos.

Dito isto, importa olhar para a outra realidade, a dos cuidados pessoais prestados nas instituições financiadas pelo Estado – IPSS e Misericórdias, e os prestados por instituições especializadas de natureza privada.

Em todas elas existem profissionais que exercem funções de cuidadores mas que não são reconhecidos como tal e estão sujeitos a condições de trabalho e regimes remuneratórios diversos, o que enfraquece a sua identidade profissional e a sua capacidade reivindicativa e limita a promoção de formação profissional.

Sem exageros é possível afirmar que os cuidados pessoais em Portugal assentam em mão de obra pouco qualificada, em regimes remuneratórios pouco acima do salário mínimo nacional e em condições de progressão nada aliciantes.

A maior parte dos profissionais nem sequer se sentem cuidadores e são habitualmente designados como auxiliares de qualquer coisa, lares, ação médica, etc., o que concorre para se deixarem envolver em rotinas sem retorno, sem preocupações de formação acrescida e sem horizontes que não sejam os do dia-a-dia.

Um cuidador é alguém que presta ajuda a outrem, normalmente com limitações de autonomia temporária ou permanente, nas suas atividades de vida diária. Parecendo simples, cuidar pode e deve ser um ato de amor, mas exige conhecimento e domínio de técnicas e boas práticas, tanto mais vastos quanto aprofundada seja a capacidade profissional dos cuidadores que fazem desta atividade profissão.

Face à longevidade acrescida da população,  às alterações demográficas e às novas formas de organização das famílias, cada vez menos capazes de assegurarem diretamente cuidados aos seus entes queridos, a necessidade de cuidadores profissionais vai crescer exponencialmente e a sua formação e capacidade profissional devem merecer uma atenção especial, não apenas por parte do Estado e das instituições que operam nesta área, mas por todos os que sentem que um dia vão poder ter necessidade de ser acompanhados por cuidadores e certamente quererão ser tratados com toda a qualidade.

O desafio é evidente para o Governo, em particular para os responsáveis políticos da Educação e da Segurança Social, e também para as escolas dos vários níveis de formação que têm de se alinhar em programas formativos complementares, desde os níveis mais básicos, até aos mais avançados, que permitam criar a nova profissão de cuidador pessoal e assegurar os seus diversos níveis de formação, condições de exercício e remuneração.

Para os operadores do setor o desafio não é menor confrontados que estão com a necessidade de assegurarem colaboradores mais qualificados, que têm de remunerar com mais justiça e equidade e garantir condições de formação contínua e melhores perspetivas de progressão.

Os assistentes pessoais, categoria funcional introduzida com a aprovação do Modelo de Apoio à Vida Independente (MAVI), que abriu caminho à experiência piloto do Centros de Apoio à Vida Independente (CAVI), e cuja formação inicial é de apenas 50 horas seguidas de algumas mais de formação contínua, são uma tipologia de profissionais que embora alguns não queiram confundir com cuidadores, necessitam possuir formação idêntica e condições de trabalho similares.

Convém esclarecer que de acordo com os princípios do Movimento Vida Independente, que defende que todas as pessoas com limitações de autonomia devem poder beneficiar de ajudas pessoais, assistentes pessoais, que lhes permitam ter o máximo de autonomia, estes profissionais não necessitam de formação especial pois são os próprios beneficiários que determinam como querem ser ajudados.

Respeitando quem se revê naquela posição, muito dificilmente se aceita que alguém sem formação, sem conhecimento técnico e sem prática baseada no estado da arte, possa ser um assistente pessoal como hoje se exige. A realidade é que o assistente pessoal deve ter a mesma formação do cuidador pessoal, no fundo trata-se do mesmo profissional, diferindo apenas na circunstância, como cuidador age em função do estado da arte, como assistente age de acordo com a vontade do utente/beneficiário, no limite do que for eticamente aceitável.

O desafio está lançado, criar legalmente a profissão de cuidador pessoal/assistente pessoal como forma de preparar a prestação de cuidados pessoais indispensáveis a uma população envelhecida e em crescimento e a pessoas com limitações de autonomia definitivas ou temporárias também em crescimento, estabelecendo planos de formação adequados e complementares entre os diversos níveis, do básico ao mais avançado, com carreiras e remunerações aliciantes e reconhecimento social.

José Manuel Silva