“Cuidar não é apenas ter atenção ao corpo, mas também ao espírito”

Aos 69 anos tem um longo percurso profissional ligado, sobretudo à área do ensino e, mais recentemente, à saúde e cuidadores e assistentes pessoais. José Manuel Silva é Presidente do Conselho de Direção da Escola Superior Saúde Santa Maria, no Porto, fundador e presidente da Caregivers Portugal – Associação Portuguesa de Cuidadores, investigador e voluntário em organizações sociais.

Nascido no Alentejo, é um “cidadão do mundo”, fez o mestrado na Universidade de Boston, nos Estados Unidos da América (EUA), o Doutoramento na Universidade da Extremadura e uma pós-graduação em Gestão Estratégica de Universidades na Universidade Politécnica da Catalunha.

Iniciou a sua vida profissional como professor do ensino secundário, passou para o superior nos anos 80 e fez grande parte da sua carreira profissional no Instituto Politécnico de Leiria onde chegou a Professor Coordenador. Desde 2013, fez um reset na carreira profissional e na vida pessoal, assumiu o desafio de liderar a Escola Superior Saúde Santa Maria (ESSSM), de se tornar cidadão do Porto e de se dedicar a questões no âmbito da formação em saúde, com particular atenção à emergência de novos especialistas em cuidados e assistência pessoal, tão necessários no apoio a pessoas com deficiências ou limitações de autonomia.

As questões da educação não foram esquecidas, mas a evolução demográfica e a atenção crescente a quantos necessitam de apoios nas suas atividades de vida diária, fizeram com que o foco da sua atividade seja hoje muito mais direcionado para as áreas estratégicas da ESSSM que se preocupa em formar profissionais que possam prestar assistência e apoio em termos de enfermagem fisioterapia, cuidados pessoais, de que o curso de Gerontologia e  cuidados de longa duração é exemplo e, no futuro, terapia ocupacional.

A revista Dignus foi conhecer o percurso pessoal e profissional de José Manuel Silva, um homem que ao longo da sua carreira foi acumulando conhecimento e experiências muito diversificadas, incluindo gestão autárquica, o que a par da sua sensibilidade social e do espírito de missão com que se envolve em tudo o que faz, lhe permitem ter uma forma muito peculiar de analisar a realidade social e demográfica do tempo presente e os grandes desafios que se nos colocam em termos de longevidade e de apoios para que o envelhecimento e as limitações de autonomia sejam vividos sem dramas e sempre com um projeto de vida positivo.

Dignus: Como vê a realidade do envelhecimento em Portugal? Quais os principais desafios de ser idoso nos dias de hoje?

José Manuel Silva (JMS): Os principais desafios com que os idosos se deparam são principalmente dois: um deles é que estamos a envelhecer mas não estamos preparados para envelhecer, as pessoas não se preocupam com o envelhecimento ou só se começam a preocupar quando estão efetivamente a envelhecer, e essa atitude tem que ser corrigida. Por outro lado, a sociedade portuguesa, tal como grande parte das sociedades, não está preparada para uma realidade em que a esmagadora maioria das pessoas chega a idades avançadas e não existem estruturas para as acolher. Há ainda um problema adicional, é que as pessoas envelhecem e a sua situação económica deteriora-se também, ou seja, temos um quadro onde as pessoas perdem qualidade de vida em termos pessoais e financeiros, e isso é uma preocupação que tem que nos mobilizar. Em Portugal temos um grande problema pois temos níveis de envelhecimento semelhantes aos dos restantes países, mas envelhecemos com menos qualidade porque temos menos saúde e um nível económico-social e financeiro mais baixo.

Dignus: Tendo já na sua formação passado por diversos países como Espanha e Estados Unidos da América, como encaram a realidade do envelhecimento nesses países?

JMS: A forma como hoje as sociedades mais desenvolvidas encaram o problema do envelhecimento é semelhante, o que muda são as condição financeiras e a cultura dos países. Em Portugal ainda há uma certa tradição de proximidade familiar, mas estamos a avançar rapidamente para níveis de cuidados profissionais que outros países já alcançaram. Cada vez mais as famílias podem cuidar dos seus entes queridos e são necessários mais prestadores profissionais de cuidados com qualificação adequada.

Em muitos países já é corrente as pessoas há medida que vão envelhecendo trocarem de residência procurando casas mais pequenas e mais funcionais, o que facilita, a sua autonomia e a prestação de cuidados. Em Portugal quem faz isso é uma minoria, por razões culturais e financeiras, o que torna muito mais difícil a independência e a manutenção de melhores condições de vida.

Por outro lado ainda não há preocupação de se construírem casas flexíveis a pensar em adaptações mais fáceis quando surge um problema de saúde limitador de autonomia e de independência.

No âmbito do projeto ICAVI, em que estamos a trabalhar, há uma equipa da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto a trabalhar nessa área.

Dignus: Quais as principais preocupações em que se centra a investigações nesta área?

JMS: Aquilo que nos preocupa mais é tentar perceber como podemos melhorar as condições de vida das pessoas mais idosas ou com limitações de autonomia. Hoje em dia o conhecimento sobre o envelhecimento está muito avançado e o que é urgente e necessário é fazer um esforço suplementar para percebermos como podemos dar melhor qualidade de vida às pessoas, recorrendo a profissionais muito qualificados e a todas as ferramentas e serviços disponíveis, incluindo a utilização das tecnologias e da inteligência artificial.

Um aspeto decisivo são os cuidadores pessoais/assistentes pessoais, pois há algo que nada substitui, o afeto, o carinho, a atenção ao outro, e aí entra a formação dos cuidadores, quer dos formais, quer dos informais, estes últimos também têm uma importância enorme, nomeadamente num país em que ainda há muitas famílias que cuidam dos familiares. Já é positivo ter um Estatuto do Cuidador Informal, mas a legislação não basta, é necessário regulamentar o Estatuto. Estamos todos na expetativa.

Dignus: Estão as instituições adaptadas às diferentes necessidades dos idosos e com respostas adequadas, ou ainda se assiste ao modelo tradicional do lar de idosos?

JMS: É preciso fazer um esforço muito grande para mudarmos a nossa perspetiva face à institucionalização, porque instalou-se em Portugal a ideia de que a melhor solução seria institucionalizar as pessoas, colocá-las num lar, quando as famílias não conseguem tratar delas. Mas esta solução é muito despersonalizadora e hoje em dia começa a ganhar força uma orientação completamente diferente, o Ageing in Place, isto é, envelhecer nas suas casas, nas suas comunidades, sem que as pessoas se desenraizem.

Este caminho não é fácil, é mais simples criar equipamentos onde se agrupam as pessoas, até politicamente é mais vistoso, mas é urgente e necessário e isso passa por incrementar as redes de cuidados, o diálogo interinstitucional, juntar esforços, abandonar a tradição dos silos, dos quintais privados, e passar a trabalhar em conjunto, em comunidade. É um enorme desafio que temos pela frente, mas não tenho dúvidas que é a melhor solução. A institucionalização deve ser apenas o último recurso, o último capítulo de uma vida que se apaga.

Há um ditado popular africano que diz que para educar uma criança é preciso uma aldeia, e neste caso podemos dizer que para cuidar de um idoso ou de alguém com autonomia limitada é preciso uma comunidade. Temos de olhar para estas realidades de uma forma global e sistémica.

Dignus: De que forma se podem identificar e tentar colmatar as carências sentidas por esta faixa etária que é tendencialmente mais vulnerável?

JMS: Na escola criámos um programa denominado “vintAgeing Mais Felizes” destinado a pessoas isoladas que são autónomas, mas um problema ainda mais grave são as pessoas idosas que não podem sair de casa, são invisíveis, e essas têm muito pouco suporte. Estarão identificadas nalguns casos, pela GNR e PSP, mas esses dados não são partilhados e o apoio acaba por falhar em muitos casos, para não dizer na maioria. A invisibilidade da velhice e da pobreza são uma chaga social e essas pessoas são a quem menos apoios chegam, não se queixam, não se manifestam, carregam a sua cruz no silêncio e, muitas vezes, com a nossa indiferença.

Claro que há muitas organizações, Misericórdias, IPSS, autarquias, Segurança Social e outras envolvidas, mas falta diálogo cruzado, trabalho em rede, planeamento, rentabilização de recursos. Veja-se o que se passa com os sem-abrigo, é apenas um exemplo, há uma miríade de organizações a trabalhar na área e quantos se tiram da rua? Por vezes, os apoios sobrepõem-se, porque todos querem aparecer, mostrar serviço, e quem cuida da eficácia das ações? Veremos se os NPISA (Núcleos de planeamento e intervenção sem-abrigo) conseguem desmentir esta triste realidade.

Dignus:  O que é a Caregivers – Associação Portuguesa de Cuidadores e qual o intuito da sua criação?

JMS: Em Portugal não existe a carreira profissional de cuidador(a), existem pessoas que fazem esse tipo de trabalho do ponto de vista profissional, mas que não são designados como cuidadores, são auxiliares de ação médica, auxiliares de lares, assistentes operacionais que também desempenham essas tarefas. Nós temo-nos empenhado muito na criação e dignificação de uma carreira de cuidadores, ou seja, o reconhecimento dos Cuidadores Profissionais. Nesse sentido criamos a Caregivers Portugal – Associação Portuguesa de Cuidadores, que é uma associação que em grande medida nasceu da nossa preocupação com os nossos diplomados, pois estes quando chegam ao mercado são integrados em carreirasPortugal que não têm enquadramento para estes novos diplomados do ensino superior.

A Caregivers tem procurado chamar a atenção para a importância dos cuidadores pessoais formais e para a importância da criação de uma profissão estruturada e reconhecida. Os cuidadores informais/familiares são muito importantes, mas os formais são cada vez mais necessários e é da formação destes que a ESSSM se ocupa.

O ato de cuidar é mais do que fazer tarefas básicas, cuidar não é apenas ter atenção ao corpo, mas também ao espírito. Por vezes precisamos mais de um carinho ou de um abraço do que propriamente que nos tratem bem do corpo. Um cuidador tem de ser cada vez mais um profissional muito qualificado, com conhecimentos variados que vão da execução de tarefas de higiene e limpeza a procedimentos técnicos complexos, um formação muitifacetada que inclua componentes da psicologia, da sociologia, do relacionamento interpessoal, das patologias mais recorrentes e das suas consequências, entre outras, pelo que não podemos continuar a pensar que qualquer pessoa com boa vontade e algum espírito prático serve para cuidar de nós em situações específicas de fragilidade e dependência. Para além do mais temos de encarar estes problemas como questões de direitos e de cidadania.

Dignus: Qual a sua visão sobre a recente aprovação do Estatuto do Cuidador Informal? O que ainda é necessário fazer?

JMS: Julgo que é um passo muito positivo, mas é ainda e apenas um primeiro passo. Temos que esperar a aprovação da regulamentação do estatuto e depois ver a forma como vai ser implementado. No entanto, tem havido, por variadas razões, um empolamento da situação dos cuidadores informais, que melhor seria designar por familiares, em detrimento dos formais que são profissionais e que são igualmente fundamentais na prestação de cuidados especializados. Isto tem tido um efeito perverso pois tem contribuído para desvalorizar o papel dos cuidadores profissionais, muitas vezes com o aval das instituições empregadoras que contratam profissionais diferenciados e os colocam a todos a realizar as mesmas atividades. Uma das situações recorrentes são os auxiliares de ação médica e os assistentes operacionais a exercerem exatamente as mesmas funções em regime de rotação, quando os seus perfis profissionais são muito diferentes, situação generalizada a outras categorias dado que face à inexistência de uma carreira e de uma profissão regulamentada de cuidador pessoal/assistente pessoal o que vigora são os instrumentos reguladores dos vários setores.

É muito importante que se dê o real valor a esta profissão emergente de profissionais cada vez mais qualificados e mais conscientes de que o seu trabalho não é apenas de  tratar do corpo das pessoas, mas também do seu espírito, dos seus afetos, do seu lado pessoal e emocional.

Dignus: Olhando para a nossa realidade social e política atual, como antevê o futuro do envelhecimento em Portugal?

JMS: Acho que hoje estamos mais preparados do que estávamos há algumas décadas atrás, mas ainda há muito caminho para fazer,  sobretudo através da mobilização da sociedade para esta realidade.

É preciso que nos convençamos que não é só às instituições e aos outros que compete tratar deste assunto, não é só às famílias que têm pessoas idosas, não é só à Segurança Social, é a todos nós, é uma tarefa que nos toca a todos até porque todos vamos envelhecer. É preciso que a sociedade em geral se consciencialize que o processo de envelhecimento é um processo normal e natural, que envolve toda a gente e, portanto, todos nós vamos ser chamados a ter um papel ativo não só porque vamos envelhecer mas também porque vamos ter que cuidar e ser cuidados. Como dizemos na Caregivers Portugal “Todos somos cuidadores, todos precisamos de cuidados”.